sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Falemos de cultura escolar

A Turma (Entre les Murs), de Laurent Cantet



Comentando, na respectiva caixa de diálogo, o post sobre “Educação ou política?”, Ana questionava: «O que se entende por ‘cultura escolar’?».

Excelente questão, que nos remete para a importância, tantas vezes esquecida, da definição de conceitos – e que nos leva directamente à difícil definição do conceito de “cultura escolar”.

São muitas as suas definições, não só entre diferentes ciências sociais (Sociologia, Pedagogia, Antropologia, Gestão…) como no seio de cada uma delas, demonstrando a dificuldade de uma delimitação. (A este propósito merece referência um interessante artigo disponível na Internet: Pol, Milan et all (2007), “Em busca do conceito de cultura escolar: Uma contribuição para as discussões actuais”, in Revista Lusófona de Educação, nº 10, pp. 63-79).

De qualquer forma, e tendo presente o post em causa, penso que se adequa a definição simplista de “cultura escolar” como o conjunto de práticas, valores e normas consideradas como o alicerce dos actos e comportamento dos actores da escola considerada como um todo e como espaço estratégico de transmissão de uma visão do mundo.

Ou, como refere Renato Gil Gomes Carvalho, «os sistemas educativos acabam por ilustrar os valores que orientam a sociedade e que esta quer transmitir. É neste sentido que se pode falar, globalmente, de uma cultura, que se cria e preserva através da comunicação e cooperação entre indivíduos em sociedade e, especificamente, numa cultura escolar, isto é, num conjunto de aspectos, transversais, que caracterizam a escola como instituição». (“Cultura global e contextos locais: a escola como instituição possuidora de cultura própria”).

Especificando: não quis deter-me numa perspectiva funcionalista de considerar a escola como mera transmissora de normas definidas exteriormente, mas reflectir – até tendo em conta o livro em análise – no quão longe a escola portuguesa está de uma perspectiva interaccionista (apesar de um caminhar em direcção à autonomia).

Como acentua José Manuel Resende (A Sociedade Contra a Escola? A Socialização Política Escolar num Contexto de Incerteza, 2010, Instituto Piaget, 18,89€), os professores, “guardiães” e transmissores de um conjunto de práticas, valores e normas, vêem-se a tentar interagir com jovens cujos valores e normas são diferentes/opostos.

Alunos esses assim caracterizados:

- “vítimas” de uma maturidade tardia, centrados na sua imagem; (pág. 249)
- vistos pelos pais e pelos professores como crianças; (pág. 249)
- têm falta de vontade, disponibilidade e concentração para o trabalho («(…) o tempo que leva a ler um livro, que leva a ler uma folha, um texto que até pode ter uma história engraçada, este tempo não é compatível com o dia-a-dia deles») (pág. 255);
- vêem o esforço intelectual como um esforço de adversidade e de prémio que nada lhes diz, habituados a ter as coisas naturalmente; (pág. 255);
- vivem uma “cultura da facilidade, do saber descartável ou do saber utilitário” («(…) Aprendeu aquele conceito, pô-lo no teste e já foi! E também há noção de que tudo tem que ter uma utilidade prática (…)»)(pág. 255);
- para eles a escola é um espaço de lazer, as aulas são um sacrifício («Para eles a escola não exige, quem exige são os pais») (pág. 256).

Além disso, e de acordo com a localização geográfica, há uma distribuição das classes sociais dos jovens na estrutura da escola e a sua cultura tem uma raiz de classe e étnica (especialmente na escola de Lisboa).

«A primeira preocupação destes professores é garantir que os alunos encontrem suportes para assumir a sua autonomia e autodeterminação face a uma cultura juvenil que parece ir ao encontro da procura de soluções simples, imediatas e superficiais. Este mundo descartável criado pelas indústrias culturais ligadas à “cultura de massas” está a interferir, quer no crescimento intelectual e cognitivo do aluno quer no crescimento da sua maturidade como pessoa.» (Resende, 2010: 251).


Há um fechamento dos alunos sobre si próprios. Em primeiro lugar, decorrente da lógica mercantil das indústrias culturais ligadas à “cultura de massas” (especialmente através da televisão). «Em segundo lugar ocorre através da cultura juvenil que se instala na escola e que entra em choque com a cultura escolar. Esta cultura juvenil em sentido amplo multiplica-se, no espaço escolar, em diferentes subculturas juvenis cada uma delas procurando a sua identidade própria, a sua originalidade e a sua autenticidade face às outras que ali coexistem.» (idem: 252)

«É à volta destes universos, por vezes encerrados sobre si mesmo, que se afinam fidelidades e oposições. Não se opondo à diversidade de grupos juvenis, estes contrastes pecam justamente pelo seu excessivo fechamento, que trazem graves consequências do ponto de vista relacional, dentro e fora das salas de aula. O outro, em sentido amplo, deixa de existir nos seus universos individuais.» (idem)

E interroga-se o sociólogo: «Estando “o outro invisível”, sobretudo o outro que não lhe convém, como é possível criar nos alunos fechados sobre si próprios uma sociabilidade ajustada às regras do espaço escolar para depois ser transportada para o espaço social que também tem regras e princípios normativos?» (idem)

Uma interrogação que partilho plenamente.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Educação ou política?

Biblioteca municipal no miradouro de Santa Luzia (1949)


A propósito de um dos livros que me propus ler durante as férias – A Sociedade Contra a Escola? A Socialização Política Escolar num Contexto de Incerteza, de José Manuel Resende (Instituto Piaget, 18,89€), eis algumas reflexões sobre o universo escolar e o poder político:


Agora que se aproxima mais um ano escolar, o momento parece oportuno para uma reflexão séria e aprofundada sobre o universo escolar e os seus actores – internos (alunos, professores, pessoal auxiliar) e externos (pais, políticos, sindicatos, meios de comunicação social).

Nos últimos anos a escola tornou-se uma arena política e nessa inversão do papel social muita responsabilidade pode ser assacada ao primeiro Governo de José Sócrates e especialmente à sua ministra da Educação, Maria de Lurdes Rodrigues, curiosamente uma mulher da Academia (professora associada do ISCTE).

A escolha dos professores como classe “a abater” enquanto estratégia de afirmação política (tentando passar a mensagem de que o governo não pactuaria nem cederia a pressões e interesses de grupo), aliada ao estilo autoritário e conflituoso da ministra, provocaram o maior combate político contra um grupo profissional de que há memória nos tempos mais recentes (convém não esquecer o braço-de-ferro da ex-ministra do PSD Leonor Beleza com os médicos, a propósito da prescrição de genéricos) – que só acalmou com o afastamento de Maria de Lurdes Rodrigues e a sua substituição por uma personalidade bastante mais serena e “simpática” aos olhos da opinião pública.

Os resultados foram, como todos sabemos, desastrosos, e a diversos níveis. Em termos políticos, levou José Sócrates a sofrer várias derrotas e um enorme desgaste; mas, em termos sociais, esta “guerra” teve também consequências que importa analisar: a união de um grupo enquanto corpo (recordando o conceito marxiano de “classe para si”), “esquecendo” as diferenças (especialmente) políticas (por quanto tempo?), forçado a responder (defender-se) a agressões simultâneas, vindas de várias direcções.

É que o ataque político desferido contra os professores resultou, também, na explosão de um mal-estar há muito latente (às vezes mais do que isso) no interior das escolas e na relação destas com a comunidade. Foi o escape “consentido” para a libertação de tensões sociais acumuladas. Os distúrbios sucederam-se a uma velocidade estonteante – assistimos, incrédulos, a relatos e vídeos no YouTube de alunos a agredir professores na sala de aula, pais a atacar violentamente docentes, violência descontrolada dentro e fora das escolas. Estava aberta a caixa de Pandora. Era já demasiado tarde para voltar atrás através de louvores aos bons professores, ou galardões para o melhor do ano.

A comunidade (uma parte dela), que durante anos acumulou frustrações e queixas de professores que “faltam às aulas”, “estão sempre em greve”, “ensinam mal”, “não querem saber dos miúdos” – só para citar as acusações mais frequentes que o senso comum transformou em dogma – reviu-se no estigma lançado pelos governantes e apoderou-se dele. O desfecho é por demais conhecido.

Qual o papel dos professores em todo este jogo social? Importa saber até que ponto são apenas vítimas da série de equívocos por que tem passado o sistema de ensino português, das políticas para o sector, da desestruturação social de alunos e suas famílias, do fechamento à comunidade. Apenas vítimas?

Há muito que académicos se dedicam ao estudo das questões de fundo subjacentes ao universo escolar, nomeadamente no âmbito da Sociologia da Educação. Entre os que têm obra recente merecem destaque Sérgio Grácio e José Manuel Resende, entre outros.

José Manuel Resende, sociólogo, investigador e professor na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FCSH-UNL) publicou recentemente um interessantíssimo estudo, de enorme actualidade: A Sociedade Contra a Escola? A Socialização Política Escolar num Contexto de Incerteza.

Académico que tinha já dedicado a sua tese de Doutoramento precisamente aos professores (O engrandecimento de uma profissão: os professores do ensino secundário público no estado novo, Fundação Calouste Gulbenkian), analisa agora os processos de socialização política nas escolas secundárias.

Através do estudo de quatro escolas contrastantes entre si – social, cultural e geograficamente – José Manuel Resende analisa o papel social dos diferentes actores e a forma como cada um se vê e vê a escola. Em causa está não só a transmissão/recepção de saberes, mas também o trabalho que deve ser realizado no âmbito de uma Educação para a Cidadania, pela qual passa a socialização política.

Mas, como o estudo revela, a escola não tem evoluído como um espaço propício ao desenvolvimento dessa (sobretudo idealizada) cidadania activa (e a “responsabilidade” não pode ser apenas assacada aos governos de José Sócrates…).

A escola, enquanto arena pública de actuação de diferentes colectivos (recorde-se Thévenot e Boltanski), é, também, palco de disputas face às diferentes representações manifestadas pelos actores sociais internos (alunos, professores) e externos (pais, técnicos, políticos, meios de comunicação social), todos eles com visões, discursos e gramáticas diferentes e na maioria das vezes opostas.

Estas diferentes visões do mundo (e da vida) transportam uma “cultura escolar” a que os professores têm de dar resposta (fazer frente?) e para a qual não estão muitas vezes preparados – ao que não é alheio o sentimento de desânimo que perpassa pelas páginas do livro, fruto do conjunto de entrevistas realizadas a docentes (o guião da entrevista está em anexo).

Ao analisar a realidade destas quatro escolas enquanto modelo, José Manuel Resende aponta precisamente a divergência sociopolítica e educativa que os professores enfrentam.

“A Sociedade Contra a Escola?...” é sem dúvida um instrumento de reflexão para todos quantos se interessam pelo ensino e desejam perceber por que falha a escola enquanto local privilegiado de educação para a cidadania.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Leituras de férias

A leitura, Henri Fantin-Latour

Tradicionalmente, escolhem-se para as férias livros de leitura mais “leve”, seguindo uma linha de pensamento que trai a (minha) lógica.

Porque é precisamente no período de férias que estamos mais libertos de preocupações e compromissos profissionais e podemos dedicar atenção a livros cujo interesse vai além de um mero folhear ou de uma leitura superficial e fragmentada.

Entre os que guardei para estes dias especiais de lazer com tempo para reflexão contam-se (sem ordem estabelecida):

- Marx, Karl (2009), Crítica do Nacionalismo Económico, Lisboa, Antígona

- Pais, José Machado (2010), Lufa-Lufa Quotidiana – Ensaios sobre cidade, cultura e vida urbana, Lisboa, ICS

- Freire, João (org.) (2009), Trabalho e Relações Laborais, Lisboa, ICS

Resende, José Manuel (2010), A Sociedade Contra a Escola? A Socialização Política Escolar num Contexto de Incerteza, Lisboa, Instituto Piaget

- Granjo, Paulo (2004), «Trabalhamos sobre um Barril de Pólvora» – Homens e Perigo na Refinaria de Sines, Lisboa, ICS


E se trocássemos umas ideias sobre eles?