sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Estamos realmente espantados?




Um estudo da Deco concluiu que as crianças passam mais de nove horas diárias nas creches e jardins-de-infância – e a maior parte desse tempo a ver televisão.
Excessivos nas representações como é habitual, as reacções são sobretudo de espanto, perplexidade, indignação.
Porquê? Que realidade desconhecemos para nos espantarmos?
Quem não conhece os horários de trabalho em Portugal? Por lei, o limite máximo da duração do trabalho é de oito horas diárias, 40 semanais.
Mas a legislação possibilita, através da adaptabilidade por regulamentação colectiva, que o limite diário seja aumentado até quatro horas e a duração semanal atinja as 60 horas. E poderíamos ainda falar em banco de horas ou horários concentrados…
Façamos então um cálculo simples, tomando como exemplo o horário elementar: o trabalhador, pai ou mãe, tem de trabalhar diariamente oito horas; a lei obriga a uma interrupção para refeição (normalmente uma hora); tem o tempo de deslocação, em ambos os sentidos (em situação privilegiada, apenas 30 minutos para cada lado). Resultado: 10 horas. Onde estará a criança durante esse tempo? Não será necessário um grande exercício de imaginação para concluirmos que estará na creche, se for muito pequena; na escola, se for um pouco maior…
Recordemos ainda, se alguém anda distraído, que o actual momento é de crise económica severa – com as consequentes implicações no tecido empresarial e na organização do trabalho.
Crise essa que veio “apenas” agravar as profundas alterações das últimas décadas, provocadas pela transição de uma economia baseada na produção industrial para uma economia focada nos serviços.
A forma de funcionamento dos mercados, especialmente os financeiros, mudou significativamente e as economias nacionais tiveram de adaptar-se a uma concorrência global. Esta mudança de paradigma económico provocou transformações nos mercados de trabalho, pressionados a adaptarem-se à nova realidade.
Consequentemente, os trabalhadores estão hoje confrontados com novas formas de organização do trabalho que passam, em grande parte, por medidas de flexibilidade – quantitativa e qualitativa, interna e externa.
Quem se atreve, pois, a colocar entraves de carácter pessoal – mesmo que se trate do bem-estar de um filho – à necessidade imposta de prolongar a jornada de trabalho?
Quantos de nós não sujeitámos já os nossos filhos a longas esperas nas creches, por estarmos a trabalhar? Há alguém “inocente” neste filme de horrores? Tenhamos coragem para acabar com a hipocrisia que transforma os pais trabalhadores em culpados, ardendo lentamente na fogueira social.
Passemos agora à segunda questão: as crianças são colocadas a ver televisão, em vez de ocupadas em actividades ajustadas à idade. Mais uma vez, espantamo-nos porquê?
Quem tem a ilusão de que as necessidades educativas e de desenvolvimento das crianças têm prioridade face à possibilidade de economizar “cortando” nos recursos humanos, seja no número de educadores, seja no de auxiliares de acção educativa?
E esta regra de “poupança” fácil tanto se aplica na rede do Estado como nos privados: se no primeiro caso a palavra de ordem é redução de efectivos, no segundo comanda a maximização do lucro. Todas as actividades humanas estão (cada vez mais) sujeitas ao domínio da mercadoria.
As excepções existem, para quem pode pagá-las. É tudo uma questão de recursos… e de classe.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Quem se lembra das CT?




Apesar de mal-amadas, as Comissões de Trabalhadores (CT) resistem e ainda não foi desta que desapareceram do quadro legal nacional.

O Código do Trabalho em vigor dedica-lhes uma Secção no capítulo do Direito colectivo (cerca de duas dezenas de Artigos, a partir do 415.º), estabelecendo os princípios gerais e demais disposições, que passam pelo direito de informação e consulta ao controlo da gestão.

A lei refere, inclusive, o direito a “exercer o controlo da gestão da empresa” (Artigo 423.º nº 1, alínea b)), cujo exercício contempla, por exemplo, “apreciar e emitir parecer sobre o orçamento da empresa e suas alterações, bem como acompanhar a respectiva execução” (Artigo 426.º nº 2, alínea a)).

Mas as CT podem também “participar, entre outros, em processo de reestruturação da empresa, na elaboração dos planos e dos relatórios de formação profissional e em procedimentos relativos à alteração das condições de trabalho” (Artigo 423.º nº 1, alínea c).

Não esquecendo o direito a obter informação sobre a “organização da produção e suas implicações no grau da utilização dos trabalhadores e equipamentos” (Artigo 424.º nº 1, alínea b)); sobre a “gestão de pessoal e estabelecimento dos seus critérios básicos, montante da massa salarial e sua distribuição por grupos profissionais, regalias sociais, produtividade e absentismo” (alínea e)); bem como sobre a situação contabilística (alínea f)), as modalidades de financiamento (alínea g)), os encargos fiscais e parafiscais (alínea h)) e o “projecto de alteração do objecto, do capital social ou de reconversão da actividade da empresa” (alínea i)).

A violação do disposto na maioria dos artigos configura, quase sempre, contra-ordenação grave ou muito grave.

Sendo a lei tão “protectora” das CT, por que razão na maior parte das empresas portuguesas elas não existem? E das que existem, quantas conseguem cumprir cabalmente as funções de que estão incumbidas? Têm acesso à informação que a legislação lhes confere? Participam na gestão?

Seria interessante ter dados recentes que respondam a estas questões.

Até para podermos comparar a importância das CT hoje com a que tiveram na Revolução de Abril.

Sobre o seu papel nessa época vale a pena ir ouvir a conferência “As Comissões de Trabalhadores na Revolução Portuguesa – 1974-75”, proferida pelo mestre Miguel Pérez na próxima quarta-feira, dia 24, na Biblioteca Museu República e Resistência/ Espaço Cidade Universitária. A partir das 18h30.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Os cientistas também se abatem…


Gustave Caillebotte


… especialmente se forem da área das ciências sociais

Vivemos tempos conturbados.


Defendemos ao mesmo tempo o micro e o macro: o indivíduo isolado em contraposição ao colectivo, mas ligado em rede ao mundo, (des)conhecendo milhares de pares nas redes sociais mas desconhecendo o seu vizinho (e o colega de trabalho é um concorrente); e a sociedade actuando à escala global, na fluidez dos mercados financeiros, em sistemas económicos mundiais.


Tudo é hiper, tudo é excesso.


A nossa hipermodernidade (como a definiu Gilles Lipovetsky), exacerbando e idolatrando o mercado, o indivíduo e os avanços técnico-científicos, já não tem tempo (nem paciência) para estudos sobre a sociedade – ou seja, o conjunto das pessoas, não o indivíduo. Menos ainda para o passado – tudo é presente, efémero, fluído, veloz…


O mercado comanda a vida, é a ideologia do momento. Mesmo quando a factura da crise financeira é uma recessão económica mundial.

As ciências sociais são desprezadas. As universidades estão em crise, as palavras de ordem são privatização, encerramento de centros de investigação, poupança.


Este é o tempo dos MBA. “Money, Money, Money…”


Não se trata de Portugal, apenas. Mas também de França, Espanha, Reino Unido, Argentina, Brasil…


Tantos os exemplos e as vozes de denúncia que já deram origem a um muito frequentado sítio na net, que pode ver aqui


sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Pobres entre os ricos


(Foto: Joshua Benoliel)

Um estudo do Observatório das Desigualdades divulgado recentemente (L'Observateur des inégalités, n°72, février 2010) alerta-nos, uma vez mais, para aquilo que já sabemos: somos os mais pobres entre os ricos da Europa.

Ou seja, analisando o limiar de pobreza (medido em paridade do poder de compra) dos 15 “velhos” Estados-membros da União Europeia, Portugal está no último lugar da tabela.

Os países do ex-bloco de Leste agora “salvos” pela UE estão, mesmo assim, atrás de Portugal.

Se não olharmos só para o nosso umbigo, podemos preocupar-nos com o facto de 17% da população europeia ser pobre.

O limiar de pobreza está fixado em 60% do rendimento médio de cada país e foi calculado em paridade do poder de compra, acentuando as diferenças entre cada um – dos 967€ do Reino Unido aos 159€ da Roménia.

Em Portugal é de 480€, o que não deixa de ser curioso, já que o salário mínimo nacional para 2010 foi fixado em 475€ (Decreto-Lei n.º 5/2010), o que já representou um aumento de 25€ face a 2009 (acréscimo de 5,6%)…

Vale a pena atentar nos vários dados, que podem ser vistos aqui

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

A cada classe sua luta?


Charlie Chaplin , Tempos Modernos


Serão os trabalhadores da France Télecom que se suicidaram os únicos a sentir-se asfixiados pelo clima laboral? A sucumbir ao cada vez menos difuso desconforto da invasão da intimidade pelo trabalho?
Libertámo-nos de amarras com o computador portátil, o telemóvel, o horário flexível, o incentivo na ponta da produtividade inalcançável como cenoura à frente do asno?
É esta classe média menos operária do que a do século XIX?
A estes técnicos não gestores, com qualificações mas sem recursos organizacionais segundo a matriz das localizações de classe de Erik Olin Wright, restar-lhes-á, apenas, mostrar o fim da linha com um acto desesperado?
Que lutas estarão (estaremos) dispostos a desencadear, que lutas serão necessárias até que a nossa civilização esteja consciente de que «está a produzir mortos-vivos, zombies», como tão bem (nos) define Sidi Mohamed Barkat?
A entrevista do filósofo argelino Sidi Mohamed Barkat ao El País, para que fui alertada por uma amiga espanhola, tem ocupado persistentemente o meu pensamento. Embora com algum atraso, gostaria de partilhá-la com quem se interessa pelas questões do trabalho e, eventualmente, lhe passou despercebida.

A entrevista pode ser lida aqui


Mas, não vá o El País retirá-la de linha, não resisto a deixá-la aqui:


ENTREVISTA: SIDI MOHAMED BARKAT Filósofo

"La lucha de clases se ha trasladado al interior de cada trabajador"

J. M. MARTÍ FONT - Barcelona - 26/01/2010

"El trabajador ha sido transformado en una especie de empleador de sí mismo. El sujeto emplea al cuerpo. La lucha de clases se ha trasladado al interior del individuo". La serie de suicidios ocurridos en Francia en los lugares de trabajo sería una de las consecuencias de esta nueva organización del trabajo. Ésta es la tesis que sostiene el filósofo Sidi Mohamed Barkat (Tlemcen, Argelia, 1948), profesor e investigador del Departamento de Ergonomía y Ecología Humana de la Universidad de la Sorbona, que ayer pronunció una conferencia en el Centro de Cultura Contemporánea de Barcelona sobre El futuro del trabajo.

Barkat, que fue director del Colegio Internacional de Filosofía de París combina su condición de académico en la más pura tradición de la excelencia francesa, con sus orígenes argelinos, lo que le ha permitido investigar en el campo de las identidades de los individuos y hurgar sin trabas en la memoria de la colonización o el terror como arma política. Los franceses contra el terror de Estado. Argelia 1954-1962 y Les artifices du pouvoir colonial et la destruction de la vie (Éditions d'Amsterdam, 2005), son dos de sus obras más importantes. Actualmente estudia los cambios sustanciales que se están produciendo en la organización del trabajo y los conflictos que generan.

Pregunta. ¿El fordismo, la organización del trabajo surgida del sistema de producción en cadena creado por Henry Ford, ya no rige nuestras sociedades?
Respuesta. Los sindicatos se batían por reducir el número de horas y aumentar los salarios y, en menor medida, controlaban las condiciones de trabajo, pero no tocaban lo que pasaba dentro del trabajo. Un sistema que ha permitido el desarrollo de la sociedad de consumo, el crecimiento económico, pero que no ha tratado la cuestión de la existencia, de la respiración.

P. ¿Dónde respiraban?
R. Los trabajadores respiraban fuera del trabajo. Con el dinero se podía acceder al mundo, se podía entrar en una comunidad -la comunidad nacional-, un mundo -la civilización- y un espacio -el territorio del país-. Eran objetos de amor y conformaban la identidad.

P. Ahora ya no respiran...
R. La nueva organización del trabajo ha cambiado este relato y los suicidios son el grito desesperado de los trabajadores que sucumben. El Gobierno buscó una razón para los suicidios y los atribuyó a problemas personales. Para mí son un grito de revuelta ante una situación que nos desborda y de la que no podemos escapar; el suicidio abre una brecha para poder tomar el aire, es una cuchillada, como lo fue realmente en el caso de un trabajador de France Télécom que en medio de una reunión se clavó un cuchillo en el abdomen. El que se suicida nos convoca para ver lo que los demás no vemos. Nuestra civilización no es consciente de que está produciendo muertos vivientes, zombis.

P. ¿Se trata de una cuestión de productividad? ¿Cuál es el factor determinante de este cambio?
R. La evaluación individualizada de la productividad crea una división en el interior de la persona. El trabajador ha sido transformado en una especie de empleador de sí mismo. En algunos sectores, ciertamente, se le ha concedido un grado considerable de autonomía, e incluso se puede decir que es más libre. Pero lo que sucede es que una parte de sí mismo -el sujeto- va a emplear a la otra parte -el cuerpo- y le va a pedir una serie de cosas. Si los objetivos que se impone son muy elevados, el sujeto puede pedirle al cuerpo tal vez lo imposible y es así como el cuerpo va a trabajar, no sólo en la empresa, sino fuera de la empresa; por ejemplo, pidiendo al marido o a la esposa que le ayude; formándose a su propio coste. El trabajo ha desbordado completamente su esfera para invadir la esfera de lo privado. Incluso a los trabajadores se les regala material como ordenadores, teléfonos, etcétera.

P. ¿Para ayudarles a trabajar?
R. En realidad para ayudarles a transportar su trabajo fuera del espacio de su trabajo. Ahí es donde empieza el conflicto entre el sujeto que ordena y el cuerpo que obedece. El cuerpo pensante, que es flexible y ligero, no puede serlo más que manteniendo una cierta economía vital; si se le empuja demasiado lejos, es como una máquina a la que se le pide más de la cuenta y se rompe. En lugar de producir ligereza e invención produce pesadez

P. ¿De dónde viene esta contradicción?
R. De las nuevas técnicas de gestión empresarial. Se dijo que los trabajadores ya no tenían razones para sentirse enfrentados al capital; se dijo: hemos hecho del asalariado su propio patrón, ya no hay lucha de clases. Pero el capital -ahora en forma de capital financiero- y el trabajo siguen estando ahí y el conflicto se ha trasladado.

P. ¿Dónde se ha trasladado el conflicto?
R. Hemos trasladado el antagonismo social al interior del individuo. El conflicto social estaba regulado por las negociaciones entre la patronal y los sindicatos, por las reglamentaciones etcétera y por lo que antes definíamos como la comunidad nacional, la identidad..., pero ahora el conflicto está dentro del individuo, y este conflicto es el que lleva a explotar, el suicidio. Se puede hablar de acoso laboral, de jefes malvados, y es cierto, esto está ahí y hay que denunciarlo, pero no es eso lo que sucede dentro de este individuo que se suicida, no es el patrón, es él mismo. No hay manera de establecer una mediación entre uno y uno mismo.

P. ¿Cuál sería el sistema?
R. La cuestión fundamental es cómo se hace correr a la gente. Si usted sólo quiere simplemente trabajar, no le darán ese empleo. Por esto se busca sólo a jóvenes, a gente que cree en esa idea de que son ganadores y no perdedores y que están dispuestos a comprometerse en el éxito, que están por la acción; gente que quiere moverse... El movimiento es el elemento determinante. El segundo elemento es la polivalencia y la reestructuración, lo que supone sustituir la existencia. Pero esta misma regla permite que la empresa diga regularmente que no hacen suficiente. La gente corre para atrapar, no sólo el salario, no sólo el reconocimiento, corre por el simple hecho de correr. Cuando se corre se crea un hilo y si uno se para, el hilo se rompe. Correr es trazar una línea. Esta línea no existe. Sólo existe cuando se corre.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Os postos de trabalho também se abatem


Life: URSS, 1932

A firma contratada para fazer a limpeza na empresa onde trabalho foi comprada por outra.
Uma consequência é já visível: o mesmo trabalho é agora feito em menos meia hora e com menos duas funcionárias.
Ou seja, o contrato de prestação de serviços entre as duas empresas é o mesmo, o trabalho a realizar também, o preço idem. Diminuiu o número de trabalhadoras, aumentou o ritmo de trabalho.
Quem saiu a lucrar?