terça-feira, 1 de junho de 2010

O trabalho e a vida no Prémio Camões


Ferreira Gullar

O poeta e dramaturgo brasileiro Ferreira Gullar foi ontem galardoado com o Prémio Camões 2010.


Ao longo dos seus 80 anos, o também jornalista, crítico de arte e ensaísta tem-se destacado pela actividade cívica e política e pela sua posição ética perante a vida e os outros.


E porque a poesia é trabalho e o trabalho deste poeta tem lembrado (e honrado) os que trabalham, Ferreira Gullar cabe neste blogue, como o homem sem estômago e a mulher de nuvens cabem no seu poema.


Celebremos o prémio com dois poemas sobre homens de estômago vazio a lutar pelo preço ajustado…

João Boa Morte
Cabra Marcado para Morrer

Essa guerra do Nordeste
não mata quem é doutor.
Não mata dono de engenho,
só mata cabra da peste,
só mata o trabalhador.
O dono de engenho engorda,
vira logo senador.

Não faz um ano que os homens
que trabalham na fazenda
do Coronel Benedito
tiveram com ele atrito
devido ao preço da venda.
O preço do ano passado
já era baixo e no entanto
o coronel não quis dar
o novo preço ajustado.

João e seus companheiros
não gostaram da proeza:
se o novo preço não dava
para garantir a mesa,
aceitar preço mais baixo
já era muita fraqueza.
"Não vamos voltar atrás.
Precisamos de dinheiro.
Se o coronel não quer dar mais,
vendemos nosso produto
para outro fazendeiro."

Com o coronel foram ter.
Mas quando comunicaram
que a outro iam vender
o cereal que plantaram,
o coronel respondeu:
"Ainda está pra nascer
um cabra pra fazer isso.
Aquele que se atrever
pode rezar, vai morrer,
vai tomar chá de sumiço".


Não há vagas

O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão

O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras

- porque o poema, senhores,
está fechado:
"não há vagas"

Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço

O poema, senhores,
não fede
nem cheira

3 comentários:

  1. Não gosto muito de poesia mas gosto da mensagem que é transmitida nestes poemas, gosto sobretudo por ser tudo dito claramente.

    Acho que Ferreira Gullar cabe mesmo muito bem no teu blog.

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  2. Já se sabe que a poesia vai mais longe, mesmo onde está o que parece não caber nela. E por isso a temem. A poesia está aí, nesse trabalho de esmeril até sobre o que é a brutalidade. Aqui, o depuramento do mundo é feito com as palavras. E as palavras são o espaço exterior do homem. A inteligência, o pensamento. E como o riso, a ironia, é isso que lhes dá forma de faca - cortante. As palavras têm esse poder e muito mais, de moldar o mundo. Poesia, do grego, é poiesis. Criação.

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  3. Gosto muito de poesia e gostei muito dos poemas, não conhecia esta autor.

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