terça-feira, 2 de março de 2010

A luta de classes não acabou




O que constitui uma classe social e a distingue das restantes? O conceito de classe social é um dos mais controversos da Sociologia. Ao longo do tempo tem dado origem a distintas correntes teóricas e ocupado boa parte dos estudos, teóricos e empíricos.

A organização das sociedades em estratos distintos é anterior à própria definição de classe social. É um traço comum a quase todas as sociedades, independentemente do tempo e do espaço.

Ou seja, o sentido das desigualdades muda consoante o enfoque e o momento histórico, influenciando não só o modo de distribuição de características em grupos como também a forma como os actores percepcionam a realidade social em que se inserem.

O conceito de classe social inaugurado por Karl Marx (que se baseou nos economistas clássicos, nos historiadores e nos socialistas utópicos) sofreu a primeira reformulação logo com Max Weber – desde então e ao longo dos dois séculos subsequentes muitos dos conceitos partem das teorias dos dois pensadores, constituindo-se assim as duas mais influentes escolas sociológicas (funcionalistas à parte).

Mas especialmente desde o triunfo da doutrina neoliberal, muitos são os defensores da teoria do fim das classes sociais, apregoando as sociedades ocidentais como exemplos (quase perfeitos) de meritocracias, onde a ascensão social depende tão-só das competências e vontade de cada um.

Recentemente, simples notícias de jornais põem em evidência a falsidade de tal construção ideológica.

A propósito da tragédia na Madeira, o Jornal de Notícias sublinha: “Tempestade que matou 42 pessoas e desalojou 600 na Madeira atingiu mais a gente pobre” (ao que, aliás, já aludiu João Rodrigues no blogue Ladrões de Bicicletas)

E a notícia do JN prossegue: “Mais de metade dos óbitos, tal como a esmagadora maioria dos 600 desalojados pela intempérie, devem-se a gente de parcos recursos: os residentes nas favelas incrustadas nas margens das ribeiras que se precipitam no Atlântico ou nas casas assentes em terras movediças, como nas freguesias do Monte e de Santo António.”

Já o jornal I, citando um estudo da OCDE revela que a “ascensão social é difícil em Portugal” e a “educação não chega para reduzir fosso”.

“Apesar do crescimento económico nas últimas três décadas ter aberto novas oportunidades de ascensão social para milhares de portugueses, a mobilidade social relativa continua mais baixa do que noutros países desenvolvidos: Portugal é um dos países da OCDE onde a educação e o contexto económico dos pais mais influência tem no salário ganho pelos filhos”, especifica o jornal.

Ou seja, Portugal continua um país com uma estratificação social rígida – e não é, ao contrário de uma das hipóteses elencadas pela OCDE, devido à “elevada” protecção dos trabalhadores.

A questão não é exclusiva de Portugal. A situação social na Europa, que a crise económica veio agravar, há muito denota sintomas de desestruturação.

De França todos os dias chegam sinais de mal-estar social.

O Diário de Notícias (divulgando um texto da agência Lusa), dá conta de um clima de crispação "sem precedentes" em França, em que “o racismo social ganha força sobre o racismo de cor”. O alerta é do Mediador da República, Jean-Paul Delevoye, entrevistado pela Agência Lusa em Paris.

“Antes, as clivagens eram relativamente claras, ou se era de esquerda ou direita, rico ou pobre. Hoje, há muitas fragmentações que criam novas fronteiras”, constata o Mediador da República, considerando que o risco de “um racismo social ganha mais força sobre o racismo de cor”.

“Isto é, eu combato pelo conforto pessoal sem me preocupar com o conforto do outro”, especifica, adiantando a sua preocupação com uma cada vez maior multidão de invisíveis: “É gente de que não falamos, que não vemos, que não ouvimos, porque são os pequenos reformados a viver com 500 euros por mês e todas as pessoas que entraram numa espiral de dessocialização.”

“Todas as nossas estatísticas são baseadas no sistema mercantil e esta divisão já não tem actualidade. Tudo tem que ser produtivo e tudo tem que ser consumível, incluindo o tempo.”

E enquanto economistas e políticos europeus esperam que da Alemanha arranque a retoma económica, o país debate o apoio aos mais carenciados – porque a isso foi obrigado pela Justiça.

Segundo o Libération, o Tribunal Constitucional alemão deu aos políticos o prazo limite do final do ano para resolverem um problema social, que é um dilema político e ideológico: quanto é preciso para viver dignamente?

É que os actuais mínimos sociais foram considerados insuficientes para se viver com dignidade – logo, contrários à Constituição alemã.

A verdade é que quase sete milhões de pessoas, dos quais 1,7 milhões de crianças, vivem com a atribuição do “Hartz IV”, um apoio social decidido em 2005 pelo governo social-democrata de Gerhardt Schroeder, a que se soma ajuda para habitação e aquecimento.

E apesar de este apoio ter representado 30% do PIB alemão do ano passado, foi considerado insuficiente, nomeadamente porque priva as crianças nesta situação de qualquer possibilidade de mobilidade social ascendente.

Significativas foram as reacções à decisão do Tribunal Constitucional.

Os liberais, parceiros de coligação da chanceler Angela Merkel, manifestaram-se contra a transferência de mais verbas para apoios sociais, e o seu líder, Guido Westerwelle (que é também ministro dos Negócios Estrangeiros), resumiu a posição do partido numa frase lapidar: “Todos falam de quem recebe, mas praticamente ninguém presta atenção à classe média, que paga tudo.”

Por sua vez, o SPD aproveitou o debate para exigir a reintrodução de um salário mínimo na Alemanha – onde cabeleireiros, seguranças ou caixas, por exemplo, não ganham sequer 5 euros por hora.

Ou seja, os salários são tão baixos que mais de um milhão de alemães, apesar de estarem empregados, necessitam de apoio estatal para não caírem abaixo do limite mínimo social (o tal Hartz IV).

O que merece a acusação do Die Linke (Partido de Esquerda): o Hartz IV permite aos patrões, a clientela do FDP, realizar uma parte dos seus lucros à custa do Estado.

Quem diz que a luta de classes acabou?



2 comentários:

  1. Acho que esta frase diz tudo: "Todos falam de quem recebe, mas praticamente ninguém presta atenção à classe média, que paga tudo.”

    Se os mais desfavorecidos recebem (o que está certo) e os da classe média pagam, o que aconteceu à classe alta? Não deveria ser esta a que mais ajudava?

    A luta de classes não acabou e será que alguém acredita que algum dia vai acabar?

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  2. Excelente análise e excelente blog! Parabéns!

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